sábado, novembro 08, 2025

Vermigli III

 Concílio de Trento e Vermigli

 

Entre 1545 e 1563 a igreja Católica Romana reúne-se para o Concílio de Trento. Esta era a resposta de contra-reforma da igreja ao movimento protestante.

Os reformadores, por sua vez, também responderam esclarecendo a fé Evangélica, entre eles Vermigli. “Calvino assumiu a mesma postura nas suas Institutas, assim como Vermigli no seu tratado sobre predestinação e justificação, e também Cranmer na sua homília sobre a salvação. Em uníssono, os reformadores agarraram-se a essa confiança porque acreditavam que a fé era um dom.”[1]

 

“Predestinação e Justificação”

 

“Predestinação e Justificação”, de Vermigli, é uma resposta ao conteúdo do Concílio de Trento.

Vermigli afirma uma marca da Reforma, “Sola Fide”, como única forma pela qual o homem tem para receber a justificação operada por Deus através dos méritos de Cristo. “O texto de Mártir sobre a justificação tenta provar três proposições básicas: que as boas obras não justificam, que a fé justifica e que só a fé justifica.”[2]

O reformador recorre amplamente às Escrituras, ao Grego e Hebraico para explanar a sua teologia. É nesta dialética que ele baseia o seu conceito de justificação e fé, que para ele, estão profundamente relacionados.

“Caracteristicamente, o texto de Mártir começa por estudar as nuances das várias palavras que a Bíblia hebraica usa para justificação e para fé. Ele fica impressionado com uma analogia que liga as noções hebraicas de justificar e crer."[3]

Fé e justificação estão interligadas porque ambas estão alicerçadas em Cristo. Ambas são certas, e ambas não dependem de nós. Tal como a fé em Cristo nos leva para uma esperança que não falha, também a justificação pela fé em Cristo é algo que nunca falhará.

“Portanto, parece haver uma certa analogia ou proporção entre esta palavra "crer" e a palavra "justificar", como a tomamos aqui. Porque, assim como "justificar" vem de julgar ou contabilizar, de atribuir justiça a alguém e não de o tornar justo na realidade, assim também "crer" não é (na verdade) tornar seguras e firmes as palavras e promessas de alguém seguras e firmes, mas pensar e determinar dentro de nós mesmos que elas são tais.”[4]

 

Obras preparatórias para a justificação

Cânon. 7. 

“Se alguém disser que todas as obras que são feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam, são verdadeiramente pecados ou merecera o ódio de Deus; ou que, com quanto maior veemência alguém se esforça em se dispor para a graça, tanto mais gravemente peca — seja excomungado.”[5]

 

Em resposta à crença da igreja Romana de que o homem colabora com Deus na sua salvação, Vermigli afirma que, é apenas pela fé que o homem é justificado.

A Lei de Deus era boa. Apesar de o homem estar perdido, isso não invalidava o valor e o poder da Lei de Deus. “… quando afirmamos que os homens não são justificados pelas obras, não se deve pensar que as boas obras são destruídas. Se essas [boas obras] pudessem ser praticadas por nós como manda a lei, então seríamos justificados por elas... Ninguém, porém, é capaz de praticar as obras que a lei ordena.”[6]

Vermigli afirma que as obras da Lei, a que Paulo se refere quando ataca a justificação pelas obras, não se referem apenas às obras ligadas à Lei Mosaica, mas a toda a obra do homem. Vermigli também rejeita que haja obras preparatórias para a justificação. Pessoas têm sido salvas no momento mais pecaminoso das suas vidas. Para Vermigli, a grande alegria do homem está na predestinação de Deus.[7] Comentado Romanos 8:29-30, ele discerne cinco etapas: a presciência, a predestinação, a vocação, a justificação e a glorificação. Entre a vocação e a justificação só uma coisa intervém, a fé. [8]

Entendemos então que, em resposta ao artigo 797 do Concílio de Trento, Vermigli afirma que nenhuma das obras do homem podem contribuir pra a sua salvação.

“Mártir rejeita a ideia de que é concedida a todos os homens uma graça geral pela qual podem praticar boas obras; este velho erro dos pelagianos confunde natureza e graça.”[9]

Eis o que Vermigli responde:

“Poderia Pelágio ter dito outra coisa se estivesse vivo?” (…) Ele parece especialmente perturbado pela insistência de Trento de que o homem não faz absolutamente nada no processo de justificação e tem o poder de receber a graça, mesmo que esta capacidade dependa de uma ação anterior da graça.”[10]

 

Justificação, ato forense

Cânon 10 

Se alguém disser que os homens são justificados sem a justiça de Cristo, pela qual ele mereceu por nós; ou que é por ela mesma que eles são formalmente justos — seja excomungado.”[11]

 

A doutrina da justificação da igreja Católica Romana misturava a justificação com a santificação. Aquele que era justificado passava a ser, na prática alguém que vivia de forma justa e agradável a Deus.

Esta visão era refutada pelos reformadores, incluindo Vermigli. Para ele, a justificação era um ato forense. O pecador é declarado justo, com base na fé e nos méritos de Cristo.

“No que diz respeito à justificação em sentido estrito, Vermigli coloca a maior ênfase no seu carácter forense, embora nunca use realmente o termo. O carácter forense é evidente pelo facto de ele descrever a justificação em termos distintamente judiciais.”[12]

“Às vezes, Deus justifica perdoando pecados, atribuindo e imputando justiça; consequentemente, hitsdiq é um verbo forense, porque olha para os julgamentos;”[13]

 

Perseverança dos Santos

Cânon 15

“Se alguém disser que o homem renascido e justificado está obrigado pela fé a crer que certamente é do número dos predestinados — seja excomungado.”

Cânon 16 

“Se alguém disser que com absoluta e infalível certeza há de ter aquele grande dom da perseverança final, sem o ter sabido por especial revelação — seja excomungado."[14]

 

Autores há que afirmam que Vermigli não caminhou com os reformadores em assuntos como a doutrina da perseverança dos santos. “Por exemplo, Donnelly argumenta que Vermigli não ensina simuliustus et peccator, ou graça irresistível, ou perseverança dos santos.”[15], e  “Mártir não defende a doutrina da perseverança dos santos, como interpretada por muitos calvinistas posteriores... Pelo contrário, Vermigli ensina que o homem pode cair em pecado e, assim, perder a justificação”[16]

No entanto, proponho uma leitura diferente. Vermigli afirma dois tipos de fé. Existe a fé que faz milagres e sinais, e a fé que salva. A fé que faz milagres pode ser concedida até a descrentes. Ele usa as palavras de Jesus em Mateus 7:22-23 para demonstrar esta posição. Aquele que recebe este tipo de fé, não produz as obras que a regeneração produziria, e no fundo, nem conhece Jesus. A questão não tem a ver com alguém ser justificado e perder a salvação, antes, a pessoa nunca conheceu Jesus, e por isso, não tem uma fé que salva.

 

“Há ainda um outro tipo de fé que serve para fazer milagres, e que difere muito da fé justificadora; é comum tanto aos fiéis como aos infiéis. Paulo menciona-o em 1 Coríntios: "A um é dada a palavra da sabedoria, a outro a palavra da ciência, a outro a fé". (...) “Além disso, afirma-se que este tipo de fé também é dado aos ímpios, como se vê no facto de fazerem milagres e profecias. Assim, Cristo pode dizer-lhes: "Não vos conheço", embora eles se vangloriem de boca aberta: "Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome, e não expulsamos demónios em teu nome, e não fizemos muitos milagres em teu nome?" Devemos separar a fé que é apenas temporária, que o Senhor menciona na parábola da semente lançada no campo. Nem todas as sementes caem em terra boa;[17]

 

Na minha leitura, não está claro se ele não acredita na perseverança dos santos, ou se crê que muitos afirmam ter fé, mas de facto não a têm.

A verdadeira fé traz consigo as obras que agradam a Deus. Vermigli acredita na importância das obras, porque a Lei é boa e não perde a sua importância. No entanto, o homem sozinho não é capaz de cumprir a lei sem ter fé em Cristo. O cumprimento da Lei é imputado ao homem pela fé em Cristo.

Eu creio que Vermigli afirmava que, a verdadeira fé em Cristo, justificava o pecador eternamente, porque esta justificação e esta fé depende de Cristo e não de nós. No entanto, este assunto requer mais estudo da minha parte.

A justificação do homem não tem mérito nenhum da sua parte. Todo o mérito é de Deus. Se o homem participasse nem que fosse um pouco na sua salvação, estaria a retirar mérito e glória a Deus, que lhE são devidas. Deus não partilha a sua glória com ninguém.

Surge, então uma última questão. Se há fé verdadeira e fé morta, se os que são salvos não podem contribuir para que isso aconteça, e se não sabemos quem é predestinado por Deus, então como é que sabemos se somos salvos ou se temos a fé verdadeira?

“Como pode o homem ter a certeza de que a sua fé é verdadeira, e não apenas uma fé morta e histórica? A verdadeira fé que vem do Espírito Santo é certa, firme e eficaz. Ela muda o coração do homem e leva-o a uma vida santa. O Espírito testifica internamente ao seu espírito, as Escrituras explicam-no, e as próprias boas obras do homem provam a transformação operada nele. Em contrapartida, os justos pelas obras não têm a confirmação do Espírito e são contrariados pelos ensinamentos da Bíblia. Até as suas boas obras são uma farsa, tal como as virtudes dos antigos pagãos.”[18]

 

Conclusão

A vida de Vermigli foi uma vida de crescimento e de aprendizagem. Deste o monasticismo, passando pelo sacerdócio Católico Romano, até ser professor renomado em Zurique. É evidente que estamos perante alguém que foi muito importante no movimento da Reforma, em vários países.

Vermigli era um teólogo soberbo. A autoridade das Escrituras e uma preocupação com as fontes primárias e os pais da igreja são marcas claras no pensamento deste reformador.

É maravilhoso perceber a obra de Deus através de homens fiéis como Vermigli.

A Deus toda a glória! 



[1] Matthew Barrett, The Reformation as Renewal: Retrieving the One, Holy, Catholic, and Apostolic Church: An Intellectual and Theological History (Grand Rapids, Michigan: Zondervan Academic, 2023), 861. Tradução Deepl

[2] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 150. Tradução pelo Deepl

[3] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 150. Tradução pelo Deepl

[4] Vermigli, Predestination and Justification, 627., Tradução Deepl

[5] Concílio de Trento, n.d. Canon 7

[6] Vermigli, Predestination and Justification, 635., Tradução Deepl

[7] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 152.

[8] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 153.

[9] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 150. Tradução Deepl

[10] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 153. Tradução Deepl

[11] Concílio de Trento. Canon 10

[12] James III, “DE IUSTIFICATIONE,” 170. Tradução Deepl

[13] Vermigli, Predestination and Justification, 627. Tradução Deepl

[14] Concílio de Trento. Canon 15 e 16

[15] James III, “DE IUSTIFICATIONE.”, Tradução Deepl

[16] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 155. Tradução Deepl

[17] Vermigli, Predestination and Justification, 632., Tradução Deepl

[18] donnely, CALVINISM AND SCHOLASTICISM IN VERMIGLI’S DOCTRINE OF MAN AND GRACE, 155., Tradução Deepl

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