quarta-feira, junho 08, 2005

O campo da bola

Havia, encostada ao “campo da bola”, lá em São Bartolomeu, um senhor que morava numa quinta. Estas personagens são sempre características nas histórias do imaginário infantil. A casa ao lado do campo… A bola, nunca podia ir para lá, mas parecia que o “raio” da bola ganhava vontade própria em alguns remates.
Íamos todos jogar para lá durante as férias do Verão.
Os meus vizinhos, convocava-os eu, os que moravam lá perto do campo, era o Rogério quem chamava. Estava tudo muito bem organizado, às três da tarde, religiosamente aparecíamos, e lá ficávamos até o último jogador cair para o lado de cansaço. Eram aqueles jogos de, “muda aos dez, acaba aos vinte…” (…) e depois de se cumprir a façanha, “agora vamos trocar de equipas isto tá desequilibrado”, e lá ia mais uma volta.
Quero vos falar do senhor que morava lá nessa quinta. Nunca cheguei a saber o seu nome, nunca lhe tinha visto a cara, mas imaginava-o um homem horrendo, sempre de faca em punho, qual “Jack Estripador”. Diziam que, se ele apanhasse a bola rasgava-a a metade. Haviam dias em que ia jogar com o coração nas mãos, dias como aquele dia em que a bola era a que me tinham oferecido no dia anterior, aquela bola toda brilhante “Mitre”, “ai se ele me apanha a bola… pessoal, nova regra, só vale jogar do joelho para baixo…”
Imaginava-o como um Huno, um Bárbaro. Não poucas vezes, desafiávamos o “poder das trevas” ao irmos roubar laranjas e maçãs, e que boas eram, eram as melhores…


Acontece que, um dia a minha mãe tinha uma visita a fazer e queria que eu fosse com ela, nem sei porquê, ainda hoje não sei o que é que fui fazer nessa visita. Bem, siga…
Estávamos a caminho, quando reparei que era o mesmo caminho que fazia para ir jogar à bola. Será que…? Pois, na “mouche”, estávamos a ir para casa do “homem sem cara”, pior, ao que parecia, a minha mãe conhecia a família, será que eles já me tinham visto? Será que me iam delatar? Comecei a ficar nervoso, tão nervoso que até acho que o senhor disse o seu nome, mas já nem me lembro dele agora.
Entrámos, a esposa dele foi quem nos atendeu. Senhora simpática, ofereceu-nos logo biscoitos e um sumo.
- Se eles soubessem que eu era, oferecer-me-iam algo, sim, oferecer-me-iam biscoitos com “605”, ou seja, veneno para ratos. - Pensava eu, - era esse o biscoito que me ofereceriam. Estava de facto nervoso com o que daria este encontro.
De repente ele aparece. Ao ouvir os passos dele, ainda mais nervoso fico. Ao aparecer, diz:
- Conceição! Então, mulher, como é que estás? E essa saúde? Este é o teu filho? O mais moço? - Perguntou ele com um grande sorriso. Se ele ao menos soubesse…
-Sim é o mais moço. - Respondeu a minha mãe como quem responde a um grande amigo.
Eu, só pensava que ele diria a seguir qualquer coisa como: “é um garoto, um patife, engana-te todos os dias que não estás em casa!” Mas não, para minha surpresa…
– Está mesmo grande o rapaz! Eu pensava que fosse o mais velho. Vejo-o às vezes aqui perto a jogar à bola. Faz bem! É triste quando essa canalha anda “prái” sem nada que fazer, ao menos ele joga! Queres ser jogador da bola? Perguntou-me ele.
Eu fiquei mudo, nem sabia o que dizer, de início, o olhar dele, parecia algo que eu temia mais do que o “diabo da cruz” mas depois, acalmei-me. Percebi que afinal, ele era simpático, tinha um sorriso mesmo bonito, sorriso de avô. Sorri para ele e disse:
- Quero sim, quero ser como o Eusébio… (entre nós, Ha! Ha! Ha! Só pode ser uma piada.)
Afinal, era simpático…
Fomos jogar no dia seguinte. Dei um chuto daqueles que “pegam mesmo mal”, e lá “foi a bola para as urtigas”.
-Eu vou buscar… - Disse eu voluntariosamente. Desta vez, e dali para a frente, passei a ir a casa dele. Pedia-lhe pessoalmente para ir buscar a bola ao quintal. Ele sorria, dava-me uma palmada nas costas ou um chuto no rabo, e dizia, “vai lá rapaz…”
À saída, ele dava-me sempre uma laranja.

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