terça-feira, maio 24, 2005

... o corpo é que paga.

Parte II

Estultice

Um dia, e é deste dia que vos quero falar, tínhamos no nosso quintal um grande monte de lenha, na parte de trás da casa. Mesmo dentro do que foi em tempos, o curral das galinhas, por baixo do castanheiro.
Se é certo que nunca fui agricultor, reconheço que, por outro lado, sempre houve em mim uma certa faceta de piromaníaco. A minha mãe nunca me tinha falado daquela lenha, ou do que haveria de fazer com ela.
Era verão, tempo de férias, e por isso, o ócio abundava grandemente.
Instruções? Tinha-as, mas eram para cortar a relva, podar a vinha, lavar o carro, etc., essas, não as queria, fixava os meus olhos na lenha…
Na noite desse dia, pensei, reflecti, e pouco antes de começar a dormir, planeei:
"Ismael, tens gasolina na garagem, pões um bocado na lenha, e fazes um favor à mãe, que por receio, não te manda queimar a lenha, mas sabes que era o que ela queria que fizesses, e assim, despachas-te daquele incómodo no quintal."
Dormi, contente com as decisões tomadas no meu leito.
De manhã, acordo, e vou de imediato buscar o garrafão com a gasolina, a saber, cinco litros de combustível. Dirijo-me, confiante, para o local de trabalho, e lembro-me:
"As folhas! É a minha oportunidade de me livrar dessas malditas folhas..."
Eram os meus apontamentos de três anos de sofrimento a tentar passar a matemática, no décimo segundo ano do secundário. Essas folhas revelavam muito da minha fraqueza, da minha ignorância. Iam arder, ser esquecidas na história, desaparecer, pensava eu, e que bem que pensava.
Fui ao meu quarto e, com atitude de vingança peguei nelas, "vocês não me apoquentam mais…", disse eu.
Quando cheguei ao monte de lenha, pus as folhas todas em forma de bola pelas frestas dos espaços entre os toros de madeira, depois qual grande cozinheiro, reguei, e bem regado, o holocausto, não de água como Elias mandou, mas do combustível que havia trazido da minha garagem.
Só faltava um rufo de tarola nesta altura, estava tão ansioso que nem aguentava esperar. Peguei no isqueiro, um isqueirozinho, dos isqueiros mais pequeninos que se pode arranjar, sim, daqueles que quando pedimos na "lojeca": “Era para comprar o isqueiro mais barato que tem", a senhora dá-nos um isqueiro minúsculo…
Com esse isqueiro, fiz a primeira faísca e acendeu, cheguei-me perto do local do sacrifício, quando de repente…
Tudo explodiu, o fogo veio-me à cara e, em acto reflexo, atirei-me para a relva. Fiquei completamente desnorteado e fui logo para casa.
Agora pergunto-me: “porque é que fui fazer tal coisa mais estapafúrdia?”
Ainda fiquei em casa a andar para trás e para a frente à espera que a dor passasse, e a dor, se querem saber, era mesmo muita.
"Será que vale a pena chamar a ambulância” , pensei. "Não, não vale a pena, isto à tarde já secou e nem se nota nada."
A dor tornou-se tão insuportável que tive que telefonar à minha mãe. Ela, batendo todos os recordes de velocidade, chegou a casa, e levou-me para o hospital (lugar onde trabalha), para as emergências. Conversámos pouco durante a viagem, ela conseguia, mesmo diante de uma acção tão ridícula como a minha, demonstrar alguma repreensão, mas acima de tudo, amor a preocupação. Creio que será algo que ainda me falta mesmo aprender a fazer...
Entrei logo nas urgêncais, sem esperar que o senhor (que nunca se percebe bem o que diz) me chamasse (afinal, talvez fosse grave o suficiente para chamar a ambulância …), deitaram-me numa maca, puseram-me gaze na cara, borrifaram-me a cara com um líquido, tão fresco, que parecia a água, água benta, que o "rico", estando em sofrimento, no hades, ansiava sentir na sua língua, implorando-a a "lázaro", que sentimento de frescura! Continuando com o espectáculo; tiraram-me a roupa, puseram-me umas fraldas (que já, por si, foi castigo suficiente do mal que tinha feito) e levaram-me para a cirurgia.
Fiquei num quarto esterilizado, porque não podia ter contacto com mais nenhum doente.
Fiquei internado durante duas semanas.


Agora, sempre que há churrascos, dizem todos a mesma piada.
"O Ismael acende a fogueira…"

7 comentários:

Violet disse...

O corpo paga forte e feio neste caso =) ta hilariante.

Começo a achar que o talento para a escrita não é so do teu primo :)

Jorge Oliveira disse...

Mais uma vez gostei muito de te ler! Não te conheço, mas deves ser moreno... LOL

Philipós disse...

ahahahahahahahahahahaha

Anónimo disse...

Que aflição!!!Sempre me arrepiei com histórias de grandes queimaduras. :S Deve ser mesmo horrível! Eu quando tenho uma queimadurazita pequena já fico toda alterada...

Bem, podemos não ter matemático mas temos escritor! Grande descrição! Fazemos assim, quando publicarmos o nosso best-seller de poemas, "Alcatra de Maçã - poemas virtuais sobre o estado do tempo e muito mais..." publicas a seguir um livro de contos! Que tal? (e...com prefácio dedicado a Derrida) lol
**

Ismael disse...

Obrigado!

Avozinha disse...

Já pensaste em te tornar contista?

..carlix.. disse...

algo que te fica sempre bem... umas piadas!
isma isma... imagina la as consequencias disso nos dias que correm... nao tinhas a Di, nao tinhas esta tua amiga chata... que seria de nós sem ti??? deixa la que eu tb ja pus a cozinha a arder!...
beijinhuz